25 de outubro de 2009

70 REAIS A HISTÓRIA

Como ganhar uma merreca no domingo, ouvir piadas de humor negro e divagar sobre deficientes mentais

Ficar quebrado é coisa do diabo. Você aceita o que vier, faz entrevista pra ser assessor até de parapsicólogo charlatão. “É pessoal, quero repercussão, só pago vocês se o SBT vier aqui gravar minhas hipnoses com o Latino”, dizia a figura na minha frente. “Cara, com licença, mas posso ir embora?”, disse eu. “Tudo bem”, respondeu no ato. No fim das contas acabei vendendo o livro que ele distribuiu pros candidatos por um real em um sebo. O cara do sebo me disse que estavam quase dando o livro na editora por dois reais.

Mas embora eu tenha perdido meu tempo com o hipnólogo safado e reconhecido internacionalmente, consegui um bico pro final de semana. Aplicar provas de um concurso da prefeitura numa escola pública aqui perto de casa, em Santana. Fui lá, seis da matina quase em ponto. Depois da reunião recebi meu crachá e minha função: “FISCAL VOLANTE”, ou seja, enquanto o pessoal aplicava as provas eu ficava no corredor levando e trazendo gente do banheiro, escoltando mesmo, e quando precisavam de algo como caneta, lápis, eu descia dois lances de escada e pegava.

Nunca tinha ganhado 70 reais por apenas um dia de trabalho. Lanchinho natural, refrigerante e bombom também me deram. Mas o melhor foram as histórias que ouvi das professoras da escola. Elas estavam falando sobre crianças com DM - deficiência mental - e como era difícil lidar com elas no meio das crianças “normais”. Uma das professoras tinha um jeito meio letárgico, rosto mole de argila. Resolvi apelidá-la de CARACANSADA, parodiando a personagem ANDRÉA CARACORTADA, de um filme do Almodóvar chamado Kika. CARACANSADA só falava nos tais “DMS”, era assim que ela se referia aos deficientes. A mulher dizia: “É muito difícil lidar com esses DMS, três deles detonam uma sala de 30”.

Eu só ouvia e dava algumas risadinhas amenas, enquanto isso, outra professora lembrava historinhas de amargar. “Tem um DM aqui na escola que fica quieto o tempo todo na sala. Aí pede pra ir ao banheiro e não volta. Vou lá buscar e pego ele atrás da porta, calado e encarando a parede. Eu digo, vamos menino, sai daí, VOCÊ NÃO QUER QUE A TIA FIQUE NERVOSA, QUER?”. Parece que depois deste último aviso o menino acabava voltando pra sala com passos bem lentos, dando uma de largadão.

“E outro então, dorme na sala e acorda todo mijado. Aí a gente tem que chamar a mãe pra levar embora”, lembrou uma outra. Mas o épico ficou por conta de CARACANSADA, disse ela: “Gente, um menino voltou do banheiro com um cheiro horrível, de cocô sabe? Aí quando fui levar ele no banheiro vi que tinha passado fezes pelas paredes, pintou a parede toda”. Todos ficaram atônitos, mas ela nos acalmou: “Chamamos a mãe do garoto pra limpar”. “Como assim a MÃE do garoto?”, disse a moça ao meu lado. “É, se a gente não chama pra limpar, ela não acredita que o filho pinta a parede de merda, hahahahahaha”.

Aí começou uma infinita variação de piadas e comentários. “O quê?? Pintava a parede de merda??”, “Isso mesmo menina, um cheiro horrível!” “Hahaha, com diarréia só dá pra fazer isso né? Imagina se ele cagasse duro, ia fazer esculturas, HAHAHA”. (Confesso que desta, eu também ri). “O pior são os DMS disfarçados, tá cheio de psicopatinha enrustido nessa escola”.

Na verdade, aquelas crianças estão ali por um só motivo: os pais não têm dinheiro para colocá-las em escolas especiais, e as escolas públicas para deficientes tem um número de vagas muito pequeno, como é o caso da DERDIC, que fica no Ibirapuera. Então elas são matriculadas em escolas públicas normais, o que causa o difícil convívio com as outras crianças sem deficiência mental e o alvoroço das professoras que não conseguem integrá-las e não entendem suas manias.

As piadas daquelas mulheres eram maldosas, sádicas, porém engraçadas. Encarei-as como impulsos irônicos de quem sabe que, apesar de educador, não tem capacidade de mudar esse quadro. Nunca vai saber nem por onde começar a mudar. Talvez seja apenas um alívio cômico na vida destas mulheres. Ao não receberem o salário devido. Ao não serem reconhecidas pelo seu patrão, O ESTADO, perdem o foco, a direção...

E os “DMS”, deficientes mentais, dementes, ou como você quiser chamar; continuam vagando por lá, inconscientes da própria situação. Sem quaisquer grandes perspectivas; acabam encarando paredes, molhando as calças, pintando banheiros de merda e sendo alvo de chacota de alunos e professores.