31 de agosto de 2012

Manuscrito achado num bolso

Conto: Manuscrito achado num bolso

Autor: Julio Cortázar



Manuscrito achado num bolso

Agora que escrevo, para outros isto podia ter sido a roleta ou o hipódromo, mas não era dinheiro que eu procurava, em dado momento tinha começado a sentir, a decidir que uma vidraça de janela no metrô podia me trazer a resposta, o encontro com uma felicidade, precisamente aqui, onde tudo acontece sob o signo da mais implacável ruptura, dentro de um tempo subterrâneo que um trajeto entre estações desenha e limita assim inapelavelmente embaixo. Digo ruptura para compreender melhor (teria de compreender tantas coisas desde que comecei a jogar o jogo) aquela esperança de uma convergência que talvez me fosse dada no reflexo em uma vidraça de janela. Ultrapassar a ruptura que as pessoas não parecem observar embora sabe-se lá o que pensam essas pessoas agoniadas que sobem e descem dos vagões do metrô, o que procura além do transporte essa gente que sobe antes ou depois para descer depois ou antes, que só coincide numa zona do vagão onde tudo está decidido por antecipação sem que ninguém possa saber se sairemos juntos, se eu descerei em primeiro lugar ou esse homem magro com um rolo de papéis, se a velha de verde continuará até o fim, se esses meninos descerão agora, é claro que descerão, porque recolhem seus cadernos e suas réguas, aproximam-se rindo e brincando da porta enquanto lá no canto uma jovem se instala para demorar, para permanecer ainda por muitas estações no assento enfim livre, e aquela outra jovem é imprevisível, Ana era imprevisível, mantinha-se muito tesa contra o encosto no assento da janela, já estava lá quando subi na estação Etienne Marcel e um negro abandonou o assento em frente e a ninguém pareceu interessar e eu pude escorregar com uma vaga desculpa por entre os joelhos dos dois passageiros sentados nos assentos externos e fiquei defronte de Ana e quase em seguida, porque tinha descido ao metrô para jogar mais uma vez o jogo, procurei o perfil de Margrit no reflexo da vidraça da janela e pensei que era bonita, que eu gostava de seu cabelo preto com uma espécie de asa breve que penteava em diagonal à testa.
Não é verdade que o nome de Margrit ou o de Ana viessem depois ou que sejam agora uma maneira de diferenciá-las por escrito, coisas assim eram decididas instantaneamente pelo jogo, quero dizer que de maneira alguma o reflexo na vidraça da janela podia chamar-se Ana, assim como também não podia chamar-se Margrit a jovem sentada frente a mim sem me olhar, com os olhos perdidos no fastio daquele interregno em que todo mundo parece consultar uma área de visão que não é a circundante, salvo as crianças que olham fixo e em cheio para as coisas até o dia em que lhes ensinam a situar-se também nos interstícios, a olhar sem ver com aquela ignorância cortês de toda presença vizinha, de todo contato sensível, cada qual instalado em sua bolha, alinhado entre parênteses, cuidando em manter o mínimo de espaço entre joelhos e cotovelos alheios, refugiando-se no France-Soir ou em livros de bolso, embora quase sempre como Ana, uns olhos se situando no oco entre o verdadeiramente observável, naquela distância neutra e estúpida que ia de minha cara à do homem concentrado no Figaro. Mas então Margrit, se eu podia prever alguma coisa era que em dado momento Ana se voltaria distraída para a janela e então Margrit veria meu reflexo, o cruzamento de olhares nas imagens daquela vidraça onde a escuridão do túnel põe seu mercúrio atenuado, sua felpa roxa e móvel que dá às caras uma vida em outros planos, tira-lhes aquela horrível máscara de giz das luzes municipais do vagão e sobretudo, oh, sim, você não poderia negar, Margrit, as obriga a olhar de verdade aquela outra cara do vidro porque durante o tempo instantâneo do olhar duplo não há censura, meu reflexo na vidraça não era o homem sentado defronte de Ana e que Ana não devia olhar em cheio num vagão de metrô, e ademais quem estava olhando meu reflexo já não era Ana e sim Margrit no momento em que Ana desviara rapidamente o olhar do homem sentado defronte dela porque não ficava bem que olhasse para ele, e ao voltar-se para o vidro da janela tinha visto meu reflexo que esperava aquele instante para sorrir ligeiramente sem insolência nem esperança quando o olhar de Margrit caísse como um pássaro em seu olhar. Deve ter durado um segundo, talvez um pouco mais porque senti que Margrit havia percebido aquele sorriso que Ana reprovava embora não fosse mais que por causa do gesto de baixar o rosto, de examinar vagamente o fecho de sua bolsa de couro vermelho; e era quase justo continuar sorrindo se bem que Margrit já não me olhasse porque de alguma maneira o gesto de Ana acusava meu sorriso, seguia-a sabendo e já não era necessário que ela ou Margrit olhassem para mim aplicadamente concentradas na miúda tarefa de experimentar o fecho da bolsa vermelha.
Assim foi com Paula (com Ofélia) e com tantas outras que se tinham concentrado na tarefa de verificar um fecho, um botão, a dobra de uma revista, mais uma vez foi o poço onde a esperança se enredava com o temor numa intensa cãibra de aranhas até a morte, onde o tempo começava a latejar como um segundo coração no pulso do jogo; desde esse momento cada estação do metrô era uma trama diferente do futuro porque o jogo decidira daquela maneira; o olhar de Margrit e meu sorriso, o recuo instantâneo de Ana à contemplação do fecho da bolsa eram a abertura de uma cerimônia que um belo dia começara a celebrar contra tudo quanto fosse razoável, preferindo os piores desencontros às correntes estúpidas de uma casualidade cotidiana. Explicá-lo não é difícil mas jogá-lo tinha muito de combate às cegas, trêmula suspensão coloidal na qual todo itinerário erguia uma árvore de imprevisível percurso. Um plano do metrô de Paris define em seu esqueleto mondrianesco, em seus galhos vermelhos, amarelos, azuis e pretos uma vasta porém limitada superfície de subtendidos pseudópodes; e aquela árvore está viva vinte horas em cada vinte e quatro, uma seiva atormentada a percorre com finalidades precisas, a que desce em Châtelet ou sobe em Vaugirard, a que em Odéon muda para continuar até La Motte-Picquet, as duzentas, trezentas, sabe-se lá quantas possibilidades de combinação para que cada célula codificada e programada ingresse num setor da árvore e aflore em outro, saia das Galeries Lafayette para depositar um embrulho de toalhas ou um abajur num terceiro andar da rue Gay-Lussac.
Minha regra do jogo era maniacamente simples, era bela, estúpida e tirânica, se eu gostava de uma mulher, se eu gostava de uma mulher sentada à minha frente, se eu gostava de uma mulher sentada em frente a mim junto da janela, se seu reflexo na janela cruzava o olhar com meu reflexo na janela, se meu sorriso no reflexo da janela perturbava ou agradava ou rejeitava o reflexo da mulher na janela, se Margrit me via sorrir e então Ana baixava a cabeça e começava a examinar atentamente o fecho de sua bolsa vermelha, então havia jogo, dava exatamente na mesma que o sorriso fosse aceito ou respondido ou ignorado, o primeiro tempo da cerimônia não ia além disso, um sorriso registrado por quem o havia merecido. Então começava o combate no poço, as aranhas no estômago, a espera com seu pêndulo de estação em estação. Lembro-me de como acordei naquele dia: agora eram Margrit e Ana, mas uma semana atrás tinham sido Paula e Ofélia, a moça loura descera numa das piores estações, Montparnasse-Bienvenue, que abre sua hidra mal-cheirosa às máximas possibilidades de fracasso. Minha conexão era com a linha da Porte de Vanves e quase em seguida, no primeiro corredor, compreendi que Paula (que Ofélia) tomaria o corredor que levava à conexão com a Mairie d'Issy. Impossível fazer alguma coisa, só olhar para ela pela última vez no cruzamento dos corredores, vê-la afastar-se, descer uma escada. A regra do jogo era aquela, um sorriso na vidraça da janela e o direito de seguir uma mulher e esperar desesperadamente que sua conexão coincidisse com a decidida por mim antes de cada viagem; e então — sempre, até agora — vê-la tomar outro corredor e não poder segui-la, obrigado a voltar ao mundo de cima e entrar num café e continuar vivendo até que pouco a pouco, horas ou dias ou semanas, a sede de novo reclamando a possibilidade de que tudo coincidisse eventualmente, mulher e vidraça da janela, sorriso aceito ou rejeitado, conexões de trens e então finalmente sim, então o direito de aproximar-se e dizer a primeira palavra, espessa de tempo estancado, de interminável pilhagem no fundo do poço entre as aranhas da cãibra.
Agora entrávamos na estação de Saint-Sulpice, alguém do meu lado se levantava e ia embora, também Ana ficava sozinha diante de mim, deixara de olhar a bolsa e uma ou duas vezes seus olhos me varreram distraidamente antes de se perderem no anúncio de termas que se repetia nos quatro cantos do vagão. Margrit não tinha voltado a olhar para mim na janela mas aquilo provava o contato, seu latejar sigiloso; Ana era talvez tímida ou simplesmente lhe parecia absurdo aceitar o reflexo daquela cara que voltaria a sorrir para Margrit; e além disso chegar a Saint-Sulpice era importante porque, se ainda faltavam oito estações até o final do percurso na Porte D'Orléans, só três tinham conexões com outras linhas, e só se Ana descesse numa daquelas três me restaria a possibilidade de coincidir; quando o trem começava a frear em Saint-Placide olhei e olhei para Margrit procurando-lhe os olhos que Ana continuava encostando suavemente nas coisas do vagão como que admitindo que Margrit não olharia mais para mim, que era inútil esperar que voltasse a olhar o reflexo que a esperava para sorrir-lhe.
Não desceu em Saint-Placide, soube-o antes que o trem começasse a frear, existe esse preparativo do viajante, sobretudo das mulheres que nervosamente verificam embrulhos, atam o casaco ou olham de lado ao levantar-se, evitando joelhos naquele instante em que a perda de velocidade trava e estonteia os corpos. Ana repassava vagamente os anúncios da estação, a cara de Margrit foi se apagando sob as luzes da plataforma e não pude saber se tinha voltado a olhar para mim; também meu reflexo não teria sido visível naquela maré de néon e anúncios fotográficos, de corpos entrando e saindo. Se Ana descesse em Mont-parnasse-Bienvenue minhas possibilidades eram mínimas, como não me lembrar de Paula (de Ofélia) lá onde uma possível conexão quádrupla estreitava qualquer previsão; e entretanto no dia de Paula (de Ofélia) tivera certeza absoluta de que coincidiríamos, até o último momento caminhava a três metros daquela mulher lenta e loura, que parecia vestida de folhas secas, e sua bifurcação à direita me envolvera a cara como uma chicotada. Por isso agora Margrit não, por isso o medo, de novo podia ocorrer abominavelmente em Montparnasse-Bienvenue; a lembrança de Paula (de Ofélia), as aranhas no poço contra a miúda confiança em que Ana (em que Margrit). Mas ninguém pode contra aquela ingenuidade que nos vai deixando viver, quase imediatamente disse comigo mesmo que talvez Ana (que talvez Margrit) não descesse em Montparnasse-Bienvenue, mas em uma das outras estações possíveis, que talvez não descesse nas intermediárias, onde não me era dado segui-la; que Ana (que Margrit) não desceria em Montparnasse-Bienvenue (não desceu), que não desceria em Vavin, e não desceu, que talvez descesse em Raspail, que era a primeira das duas últimas possíveis; e quando não desceu e eu soube que só restava uma estação na qual podia segui-la contra as três finais em que tudo já dava na mesma, procurei de novo os olhos de Margrit na vidraça da janela, chamei-a de um silêncio e de uma imobilidade que deveriam chegar até ela como uma exigência, como um marulho, sorri-lhe com o sorriso que Ana já não podia ignorar, que Margrit tinha de admitir embora não olhasse para meu reflexo açoitado pelas meias-luzes do túnel desembocando em Denfert-Rochereau. Talvez o primeiro golpe dos freios tenha feito tremer a bolsa vermelha nas coxas de Ana, talvez só o tédio lhe mexesse a mão até a mecha preta que atravessava sua testa; naqueles três, quatro segundos em que o trem se imobilizava na plataforma, as aranhas cravaram suas unhas na pele do poço para mais uma vez me vencer partindo de dentro; quando Ana se ergueu com uma só e límpida flexão de seu corpo, quando a vi de costas entre os passageiros, acho que procurei ainda absurdamente o rosto de Margrit na vidraça ofuscado de luzes e movimento. Saí como que sem o saber, sombra passiva daquele corpo que descia na plataforma, até despertar para o que viria, para a dupla escolha final cumprindo-se irrevogável.
Penso que está claro, Ana (Margrit) tomaria um caminho cotidiano ou circunstancial, enquanto antes de subir naquele trem eu decidira que se alguém entrasse no jogo e descesse em Denfert-Rochereau, minha conexão seria a linha Nation-Étoile, da mesma maneira que se Ana (que se Margrit) tivesse descido em Châtelet só poderia segui-la no caso de tomar a conexão Vincennes-Neuilly. No último momento da cerimônia o jogo estava perdido se Ana (se Margrit) tomasse a conexão da Ligne de Sceaux ou saísse diretamente à rua; imediatamente, mesmo porque naquela estação não havia os intermináveis corredores de outras vezes e as escadas conduziam rapidamente ao destino, àquilo que nos meios de transporte também se chamava destino. Eu a via mexer-se entre as pessoas, sua bolsa vermelha como um pêndulo de brinquedo, erguendo a cabeça à procura dos letreiros indicadores, vacilando um instante até orientar-se para a esquerda; mas a esquerda era a saída que levava à rua.
Não sei como dizer, as aranhas mordiam demais, não fui desonesto no primeiro minuto, simplesmente a segui para depois talvez admitir, deixá-la partir para qualquer de seus rumos lá em cima; no meio da escada compreendi que não, que talvez a única maneira de matá-las fosse negar ao menos uma vez a lei, o código. A cãibra que me crispara naquele segundo em que Ana (em que Margrit) começava a subir a escada proibida cedia lugar de repente a uma fadiga sonolenta, a um golem de lentos degraus; recusei-me a pensar, bastava saber que continuava a vê-la, que a bolsa vermelha subia em direção à rua, que a cada passo o cabelo preto lhe tremia nos ombros. Já era de noite e o ar estava gelado, com alguns flocos de neve entre rajadas e chuvisco; sei que Ana (que Margrit) não teve medo quando me coloquei a seu lado e lhe disse: "Não é possível que nos separemos assim, antes de nos termos encontrado."
No café, mais tarde, agora somente Ana enquanto o reflexo de Margrit cedia a uma realidade de cinzano e palavras, disse-me que não compreendia nada, que se chamava Marie-Claude, que meu sorriso no reflexo lhe fizera muito mal, que em dado momento pensara em se levantar e mudar de lugar, que não tinha me visto segui-la e que na rua não sentira medo, contraditoriamente, olhando nos meus olhos, bebendo seu cinzano, sorrindo sem se envergonhar de sorrir, de ter aceitado quase em seguida minha abordagem em plena rua. Naquele momento de uma felicidade como que esparramada, de abandono a um deslizar cheio de álamos, não podia dizer-lhe o que ela teria imaginado como loucura ou mania e que era assim mas de outra maneira, de outras margens da vida; falei-lhe de sua mecha de cabelo, de sua bolsa vermelha, de seu modo de olhar para o anúncio das termas, de que não lhe tinha sorrido por donjuanismo nem tédio mas para dar-lhe uma flor que não possuía, o sinal de que gostava dela, de que me fazia bem, de que viajar defronte dela, de que outro cigarro e outro cinzano. Em nenhum momento fomos enfáticos, falamos como de algo já conhecido e aceito, olhando-nos sem nos machucar, acho que Maria-Claude me deixava vir e estar em seu presente como talvez Margrit teria respondido a meu sorriso na vidraça se não houvesse de permeio tantas idéias preconcebidas, tanto não deve responder se falarem com você na rua ou lhe oferecerem balas e quiserem levá-la ao cinema, até que Maria-Claude, já libertada de meu sorriso a Margrit, Marie-Claude na rua e o café pensara que era um bom sorriso, que o desconhecido lá de baixo não tinha sorrido para Margrit para tatear outro terreno, e minha maneira absurda de abordá-la tinha sido a única compreensível, a única razão para dizer que sim, que podíamos beber um drinque e conversar num café.

Não me lembro o que pude contar-lhe de mim, talvez tudo a não ser o jogo mas então só isso, em dado momento rimos, alguém fez a primeira piada, descobrimos que gostávamos dos mesmos cigarros e de Catherine Deneuve, deixou-me acompanhá-la até a entrada de sua casa, estendeu-me a mão com firmeza e consentiu no mesmo café à mesma hora de terça-feira. Peguei um táxi para voltar a meu bairro, pela primeira vez em mim mesmo como num incrível país estrangeiro, repetindo-me que sim, que Marie-Claude, que Denfert-Rochereau, apertando as pálpebras para guardar melhor seu cabelo preto; aquela maneira de mexer a cabeça de lado antes de falar, de sorrir. Fomos pontuais e nos contamos filmes, trabalho, verificamos diferenças ideológicas parciais, ela continuava me aceitando como se maravilhosamente lhe bastasse aquele presente sem razões, sem interrogação; nem parecia perceber que qualquer imbecil a teria tomado por fácil ou tola; acatando inclusive que eu não tratasse de compartilhar o mesmo banco no café, que no percurso da rue Froidevaux não lhe passasse o braço pelo ombro no primeiro sinal de uma intimidade, que a sabendo quase só — uma irmã mais moça, muitas vezes ausente do apartamento do quarto andar — não lhe pedisse para subir. Se de alguma coisa não podia desconfiar era das aranhas, tínhamo-nos encontrado três ou quatro vezes sem que mordessem, imóveis no poço e esperando até o dia em que eu soube como se não tivesse sabido o tempo todo, mas às terças-feiras, chegar ao café, imaginar que Marie-Claude já estaria lá ou vê-la entrar com seus passos ágeis, sua morena recorrência que lutara inocentemente contra as aranhas outra vez acordadas, contra a transgressão do jogo que só ela tinha podido defender apenas me dando uma breve, morna mão, somente aquela mecha de cabelo que passeava por sua testa. Em dado momento deve ter percebido, ficou calada olhando para mim, esperando; já era impossível que não me delatasse o esforço para fazer durar a trégua, para não admitir que voltavam pouco a pouco apesar de Marie-Claude, contra Marie-Claude que não podia compreender, que ficava calada olhando para mim, esperando; beber e fumar e falar-lhe, defendendo até o fim o doce interregno sem aranhas, saber de sua vida simples e com horário e irmã estudante e alergias, desejar tanto aquela mecha preta que lhe penteava a testa, desejá-la como um término, como realmente a última estação do último metrô da vida, e então o poço, a distância de minha cadeira àquele banquinho em que nos teríamos beijado, em que minha boca teria bebido o primeiro perfume de Maria-Claude antes de levá-la abraçada até sua casa, subir aquela escada, despir-nos finalmente de tanta roupa e tanta espera.
Então eu lhe disse, lembro-me do muro do cemitério e de que Marie-Claude encostou-se nele e me deixou falar com o rosto perdido no musgo quente de seu casaco, quem sabe se minha voz lhe chegou com todas as suas palavras, se foi possível que compreendesse: disse-lhe tudo, cada detalhe do jogo, as improbabilidades confirmadas desde tantas Paulas (desde tantas Ofelias) perdidas no fim de um corredor, as aranhas em cada final. Chorava, sentia-a tremer contra mim embora continuasse me agasalhando, sustentando-me com todo seu corpo encostado no muro dos mortos; não me perguntou nada, não quis saber por que nem desde quando, não lhe ocorreu lutar contra uma máquina montada por toda uma vida a contrapelo de si mesma, da cidade e suas palavras de ordem, somente aquele choro ali como um animalzinho machucado, resistindo sem força ao triunfo do jogo, à dança exasperada das aranhas no poço.

Na porta de sua casa disse-lhe que nem tudo estava perdido, que dos dois dependia tentar um encontro legítimo; agora ela conhecia as regras do jogo, talvez nos fossem favoráveis dado que não faríamos outra coisa senão nos procurar. Disse-me que podia pedir quinze dias de férias, viajar levando um livro para que o tempo fosse menos úmido e hostil no mundo subterrâneo, passar de uma conexão a outra, esperar-me lendo, olhando os anúncios. Não quisemos pensar na improbabilidade, em que talvez nos encontraríamos num trem mas que não bastava, que desta vez não se poderia faltar ao preestabelecido; pedi-lhe que não pensasse, que deixasse correr o metrô, que não chorasse nunca naquelas duas semanas enquanto eu a procurava; sem palavras ficou entendido que se o prazo se esgotasse sem nos tornarmos a ver ou só nos vendo até que dois corredores diferentes nos separassem, já não faria sentido voltar ao café, à porta de sua casa. Ao pé daquela escada de bairro que uma luz alaranjada estendia docemente para cima, para a imagem de Marie-Claude em seu apartamento, entre seus móveis, nua e dormindo, beijei-a no cabelo, acariciei-lhe as mãos; ela não procurou minha boca, foi se afastando e a vi de costas, subindo outras das tantas escadas que as levavam sem que pudesse segui-las; voltei a pé para casa, sem aranhas, vazio e lavado para a nova espera; agora não podiam me fazer nada, o jogo ia recomeçar como tantas outras vezes mas só com Marie-Claude, segunda-feira descendo a estação Cou-ronnes de manhã, saindo em Max Dormoy em plena noite, terça-feira entrando em Crimée, quarta-feira em Philippe Auguste, a precisa regra do jogo, quinze estações nas quais quatro tinham conexões, e então na primeira das quatro sabendo que teria de continuar até a linha Sèvres-Montreuil como na segunda teria de tomar a conexão Clichy-Porte Dauphine, cada itinerário escolhido sem uma razão especial porque não podia existir nenhuma razão, Marie-Claude teria subido talvez perto de sua casa, em Denfert-Rochereau ou em Corvisart, estaria trocando em Pasteur para continuar até Falguière, a árvore mondrianesca com todos os seus galhos secos, acaso das tentações vermelhas, azuis, brancas, pontilhadas; quinta, sexta, sábado. De qualquer plataforma ver entrar os trens, os sete ou oito vagões, permitindo-me olhar enquanto passavam cada vez mais lentos, chegar até o fim e subir num vagão sem Marie-Claude, descer na estação seguinte e esperar outro trem, seguir até a primeira estação para procurar outra linha, ver chegar os vagões sem Marie-Claude, deixar passar um trem ou dois, subir no terceiro, continuar até o terminal, retornar a uma estação de onde podia passar para outra linha, decidir que só tomaria o quarto trem, abandonar a procura e subir para comer, retornar quase em seguida com um cigarro amargo e sentar-me num banco até o segundo, até o quinto trem. Segunda, terça, quarta, quinta, sem aranhas porque ainda esperava, porque ainda espero neste banco da estação Chemin Vert, com este caderninho em que uma mão escreve para inventar um tempo que não seja só aquela interminável rajada que me projeta em direção ao sábado no qual talvez tudo terá acabado, em que voltarei sozinho e as sentirei acordar e morder, suas pinças enraivecidas exigindo-me o novo jogo, outras Marie-Claudes, outras Paulas, a reiteração depois de cada fracasso, o recomeçar canceroso. Mas é quinta-feira, é a estação Chemin Vert, lá fora cai a noite, ainda se pode imaginar qualquer coisa, inclusive pode não parecer incrível demais que no segundo trem, que no quarto vagão, que Marie-Claude num assento contra a janela, tenha me visto e se levante com um grito que ninguém salvo eu pode escutar assim em plena cara, em plena corrida para saltar do vagão lotado, empurrando passageiros indignados, murmurando desculpas que ninguém espera nem aceita, ficando de pé contra o assento duplo ocupado por pernas e guarda-chuvas e embrulhos, por Marie-Claude com seu agasalho cinza contra a janela, a mecha preta que o arranco repentino do trem apenas agita como suas mãos tremem em cima das coxas num chamado que não tem nome, que é só isso que agora vai acontecer. Não há necessidade de falar, não se poderia dizer nada por cima desse muro impassível e desconfiado de caras e guarda-chuvas entre mim e Marie-Claude; restam três estações que fazem conexão com outras linhas, Marie-Claude deverá escolher uma delas, percorrer a plataforma, seguir por um dos corredores ou procurar a escada de saída, alheia à minha escolha que desta vez não transgredirei. O trem entra na estação Bastille e Marie-Claude continua ali, as pessoas descem e sobem, alguém deixa desocupado o assento a seu lado mas não me aproximo, não posso me sentar ali, não posso tremer junto dela como ela estará tremendo. Agora vêm Ledru-Rollin e Froidherbe-Chaligny, naquelas estações sem conexão Marie-CIaude sabe que não posso segui-la e não se mexe, o jogo tem de ser jogado em Reuilly-Diderot ou em Daumesnil; enquanto o trem entra em Reuilly-Diderot afasto os olhos, não quero que saiba, não quero que possa compreender que não é ali. Quando o trem arranca vejo que não se mexeu, que nos resta uma última esperança, em Daumesnil há apenas uma conexão e a saída para a rua, vermelho ou preto, sim ou não. Então olhamos um para o outro, Marie-CIaude ergueu o rosto para encarar-me em cheio, agarrado à barra do assento sou aquilo que ela olha, alguma coisa tão pálida como o que estou olhando, o rosto sem sangue de Marie-CIaude que aperta a bolsa vermelha, que vai fazer o primeiro gesto para levantar-se enquanto o trem entra na estação Daumesnil.

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